sexta-feira, 20 de maio de 2016

A música da Lisboa invisível tem milhões de cliques no YouTube

Fazem música à margem da indústria, mas não são underground. Têm milhares – ou milhões – de visualizações no YouTube, andam em concertos por vários países, mas nem uma biografia disponível na Internet. Percurso pelos subúrbios de Lisboa à procura dos (outros) grandes hits do momento.


São jovens, vivem na periferia de Lisboa, fazem música praticamente sozinhos. Muitos começaram no computador, em casa. O circuito comercial oficial não os conhece. Não estão nos tops de vendas das grandes lojas de discos. Funcionam como uma espécie de mercado paralelo da música, mas poucos conseguem viver do que criam. Os seus hits têm milhares de visualizações – alguns chegam aos milhões. Actuam no bairro onde vivem, só que a dimensão da popularidade extrapola esse território: há quem faça concertos em França, Luxemburgo, Suíça, Espanha, Cabo Verde, Angola…
Isto mesmo foi o que notou o investigador em Estudos Urbanos António Brito Guterres na sua Tedx Talk do ano passado, A cidade invisível de Lisboa – a TED é uma organização dedicada ao lema “ideias que merecem ser compartilhadas”, e a Tedx é um programa organizado localmente de forma independente com o mesmo espírito.
Nesta intervenção que pode ser vista no YouTube, Brito Guterres passa em revista as mudanças da cidade-centro e a formação das periferias, marcadas pelas migrações internas e pelas imigrações. Conta a história de uma professora de um dos subúrbios que queria conhecer melhor os seus estudantes através da música, mas não conseguia encontrar o que ouviam em lado nenhum (justamente porque o que ouviam estava nos circuitos que ela desconhecia).
Mostrando o top 10 da loja Fnac, o investigador escolheu seis dos singles dos artistas aí representados, como David Fonseca ou Ornatos Violeta (no YouTube há vários anos) para concluir que têm pouco mais de 100 mil visualizações. Comparou com os dados de alguns singles de rappers feitos nos subúrbios, gravados em armários de quarto, cantados em crioulo e com letras duras sobre a realidade, e chegou a números muitíssimo superiores: nenhum abaixo dos 500 mil, três a bater ou a superar o milhão. “Não conhecer a cidade toda é normal, agora não conhecer algo a esta escala…”, comentava. “Um artista que tem um milhão de visualizações é artista aqui, em Londres, em Nova Iorque…” – e em todo o lado.

NUNO FERREIRA SANTOS
Afinal, quem são estes artistas que estão à margem da “cidade vigente”, têm milhares de fãs, mas nem uma biografia sobre eles está disponível na Internet? O que cantam que os torna tão populares? Como gerem essa popularidade desconhecida pela indústria formal? Visita guiada por vários territórios onde a música da “cidade invisível” se faz ouvir alto e bom som.

Do bairro para Cabo Verde

Do bloco onde vivem os pais de Loreta miram-se o castelo e os prédios de Sintra – daí o nome dado a esta localidade, Mira-Sintra. Loreta, que canta sobretudo em crioulo, tem videoclips como Mata um genio, onde aparece de armas em punho, ao lado de uma mulher loira que carrega uma espingarda, ou outros, como Vida sta mariado, a partir de uma música de Orlando Pantera, num cenário mais descontraído e de lazer.
Com contas no Spotify e no iTunes, duas plataformas que colocam à disposição do utilizador um cardápio vastíssimo de música, tem uma legião de seguidores – no Facebook são mais de 17 mil fãs, no Instagram cerca de 12 mil, a página do seu colectivo KBA tem 26 mil likes e há vídeos com mais de meio milhão de visualizações no YouTube – um dos vídeos, Nha identidade, chegou a ter um milhão.
O fundador dos KBA, 28 anos, dois filhos, mudou-se recentemente do apartamento dos pais, no Bairro Fundação D. Pedro IV, mas é lá que nos recebe, com a mãe a abrir a porta. A população é maioritariamente composta por pessoas realojadas no início de 2000, misturando raças e etnias – brancos, ciganos, negros, afro-descendentes.
Loreta começou a tentar fazer música aos 11 anos, no bairro de lata onde vivia. Experimentava com cassetes, tentava repetir partes de músicas que ouvia. O pai toca acordeão e funaná. “Cresci a ouvir música. Lembro-me de ser pequeno e os meus irmãos porem música de Cabo Verde."
A partir dos 13, com um amigo cantavam em festas da comunidade. Começaram a ganhar gosto e a ser convidados para outras festas. Gravaram pela primeira vez com o estúdio móvel do produtor e músico Primero G, num mini-disc – tinham uns 15 ou 16 anos.
Mais tarde organizou-se com outros amigos para “juntar as pontas”: um comprou o microfone, outro comprou uma torre, outro comprou um ecrã e montaram o home studio, que ia girando por casa uns dos outros. A primeiramixtape que criou, “para aí em 2007 ou 2008”, nem foi ele que a colocou na Internet. Eram cerca de 11 músicas e Loreta lembra-se de ter ficado surpreendido com os convites para tocar em outros bairros. “Começámos a acreditar: o people está a gostar disto, também gostamos, vamos continuar.”
As coisas mudaram quando conheceu o “Katana” das Katana Produções, que tinha um estúdio em Odivelas onde gravaram o primeiro álbum em 2013:Desde Sempre para Sempre. Depois veio Buling, e a seguir Loreta iniciou-se a solo com os álbuns DMTLast Hope, e, agora, Santos e Pecadores.
Loreta foi mobilizador comunitário, colaborou com a organização não-governamental Olho Vivo e com o programa Escolhas, do Alto Comissariado para as Migrações, trabalhou nas obras, mas neste momento está no desemprego. A música não chega para pagar as contas. “Tenho uma casa arrendada, só com a música é impossível viver.”
Numa loja tradicional não é possível comprar a música de Loreta. Antigamente, ia a uma fábrica, fazia uns 500 CD e em cada espectáculo vendia 20. “Não sinto que tenha uma obra digna de estar à venda num circuito mainstream, porque é preciso money, horas de estúdio, é mais a qualidade do produto final, ter qualidade suficiente para passar numa rádio.”
Foi só em 2014 que actuou pela primeira vez em Cabo Verde. Quando chegou à Cidade da Praia, tinha pessoas no aeroporto à espera, a tirarem fotos em cada passo; na rua era reconhecido, os miúdos abordavam-no em massa. Abriram o concerto de Anselmo Ralph, e foram actuar em mais um par de sítios na ilha de Santiago. “Sempre a abarrotar. No show do Tarrafal estivemos duas horas para sair do palco.”
Loreta tem mais de 200 músicas que nunca pôs na Internet, trabalha a “toda a hora”. Acha que é popular por ter conseguido dar uma versão “século XXI à cabo-verdianidade”, “fácil de perceber para quem é de Cabo Verde e para quem nasceu na Europa”.
Filho de cabo-verdianos que nasceu em Portugal mas não tem nacionalidade portuguesa, sente que pertence a uma geração de “afro-tugas”, um “bocado sem terra”. Da música que faz diz que é um diário ou uma chamada de atenção, “o trabalho do jornalista”, coisas que observa e acha que estão erradas. “Não sigo uma linha. Faço intervenção, mas também vou falar sobre um dia espectacular que tive.” Fala sobre realojamentos, injustiças, violência policial. “A violência e brutalidade policial são das coisas que mais me indignam. Isso significa pôr tudo no meu saco. Todos os dias brancos roubam, todos os dias pretos roubam. Não se vê o puto de mochila branco a ser encostado à parede e revistado, mas vês acontecer isso aos jovens africanos ou descendentes de africanos." Disso trata A bófia apontou-me uma arma.
Mas, diz, só “30% a 40%” das músicas falam de temas mais duros. “Quando somos músicos 100% de intervenção, não nos tornamos populares, e isso faz com que nem toda a gente consiga ouvir a nossa voz. Se conseguir tornar-me popular para que quando abrir a boca um milhão de pessoas me ouça, então consigo intervir.”
Vai cantar no Algarve, no Porto, em Lisboa, tem um público diverso, mas acha que “a grande força” são jovens como ele, “descendentes de cabo-verdianos”. A maioria dos likes na sua página do Facebook é de Lisboa; em segundo lugar vem Luanda, depois Paris, Cidade da Praia… Já foi cantar várias vezes ao Luxemburgo e a França, à Espanha, à Suíça, a Cabo Verde, com “casa sempre acima da média”.
Há um lado nele que não tem a certeza de querer fazer parte da indústria. “O CD para vender a um público maior tem de fugir um bocado ao que tenho feito. Tinha de fazer mais músicas em português, que dessem para passar num clube, e com outros conteúdos, não tão crus.” Mas não se importava de ter os seus discos em lojas como a Fnac, “claro!”. O que ganha com visualizações no YouTube “é mínimo”: "Menos de meio cêntimo por visualização…”
O que era preciso para viver da música? Ter alguém que lhe agendasse dois concertos por mês, pelo menos. “Os organizadores de eventos ainda têm o pé atrás por o rap ser uma música de rua, de bandidagem, e ainda não perceberam que é um mercado novo por explorar e tem muitos seguidores.”
O segredo da sua popularidade é “bastante básico”: “A música quando é boa tem pernas próprias. Quando se ouve uma boa música, mostra-se ao amigo, que mostra ao amigo, e aquilo alastra-se.”

Música para curtir

De Mira-Sintra ao Vale da Amoreira, na Moita, são quase 2h30 de caminho em transportes públicos, comboios. Atravessamos a ponte sobre o Tejo de carro, numa manhã de sol. Do centro de Lisboa não demora mais de 30 minutos. Passamos de uma localidade com uma população de pouco mais de cinco mil pessoas para outra com cerca de dez mil, segundo os dados oficiais. Aqui vivem maioritariamente portugueses. Há também população cigana e de origem cabo-verdiana, angolana, guineense.
Deejay Telio, 19 anos, e o seu colectivo Somos a Família (SAF) são mesmo uma família – a entrevista será feita em grupo, num dos pátios dos prédios do bairro, com Deedz, Dino e Ericsson. O lema dos SAF é: “Pomos a lealdade acima de tudo.”


           fONTE> https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/ha-hits-que-passam-ao-lado-dos-tops-oficiais-1732144

0 comentários:

Postar um comentário